"Única selecção de futebol do mundo que tem 17 dirigentes e quatro técnicos." A frase é do "Diário de Lisboa", em pleno Euro-84. Portugal chegou a França com uma comissão técnica composta por Fernando Cabrita, Toni, Morais e José Augusto, e com um grupo de jogadores profundamente divididos entre Benfica e Porto - ingredientes mais do que necessários para que tudo corresse mal. O extinto jornal descrevia assim o banco de suplentes durante um jogo: "[os 4 treinadores] gritarem seu conselho, sua ordem, sua indicação, cada uma diferente e todas a chocarem-se entre si." Mas Portugal tinha jogadores como Chalana, Jordão, Gomes ou Nené. O seu talento superou todos os desentendimentos fora de campo e a selecção conseguiu um histórico 3.º lugar no primeiro Europeu que disputou.
Trinta anos depois, Portugal arranca a qualificação para o Euro-2016, novo passaporte para estar numa fase final em França (este Domingo, 19h45). Toni, um dos elementos da célebre comissão técnica, recorda algumas das peripécias da altura com uma memória de precisão assustadora. O benfiquista sabe os meses dos jogos de preparação, os resultados, os marcadores, e fala com uma tranquilidade que só a passagem do tempo pode dar sobre um evento demasiado agitado para a selecção nacional: "Mesmo com todas as fracturas entre jogadores do Porto e Benfica - alguns nem se falavam -, fez um resultado histórico. Repetidas em Saltillo [México-86], felizmente que situações destas não voltaram a acontecer. A própria federação cresceu, com uma estrutura diferente."
Otto Glória era o treinador no início da qualificação, mas abandona depois da humilhação sofrida na Rússia (derrota por 5-0), também devido a motivos de saúde. Fernando Cabrita assume o cargo. "Eu e o sr. Morais não tínhamos contrato com a federação, éramos colaboradores", explica Toni. O objectivo da FPF foi encontrar adjuntos com ligação aos grandes clubes: Morais ao FC Porto, Toni ao Benfica, para equilibrar as divisões no plantel. Na chegada a França, num grupo com Alemanha, Espanha e Roménia, poucos esperavam que Portugal tivesse alguma hipótese. "Mas nesta década, até ali, o Benfica tinha sido finalista da Taça UEFA, o Porto da Taça das Taças e vem a ser campeão europeu e do mundo em 87, o Benfica finalista da Taça dos Campeões Europeus em 88. Há um conjunto de jogadores do Benfica e FCP de grande qualidade (e, por exemplo, António Oliveira e Manuel Fernandes, do Sporting, ficaram de fora). Tal como em 1966, quando Portugal foi para o Campeonato do Mundo, ninguém acreditava na selecção, a equipa acabou por se transcender e conseguir uma das melhores classificações de sempre em Mundiais."
Portugal chega à meia-final com a anfitriã França. "O jogo foi a prolongamento com uma exibição extraordinária do Manuel Bento, que levou a que Portugal estivesse a 5 ou 6 minutos de chegar à final." Uma derrota por 3-2, num jogo que fica para sempre como um dos melhores em Europeus. Mas chega de conversa, damos a palavra a Toni.
Como era possível tomar decisões com quatro treinadores?
Hoje, uma situação dessas era impensável, nunca aconteceria. Na véspera do jogo com a Alemanha, sentindo o ambiente, que estava de cortar à faca, todo o grupo se reuniu, jogadores e técnicos. Lembro-me até de ter tido uma intervenção dizendo isto: "Só faltou aos jogadores do Benfica trazerem as camisolas do Benfica, aos do Porto as camisolas do Porto e, no fundo, devíamos estar todos vestidos com uma camisola, a da selecção." Mas depois, dentro do campo, conseguiram pôr os interesses da selecção acima dos individuais.
Houve muitas críticas...
Tinham sempre os seus bodes expiatórios. Toda a gente percebeu que o elo mais fraco era a comissão técnica, foi mais fácil bater. O que é certo é que os jogadores também tiveram muitas culpas no ambiente. No jogo conseguiam ultrapassar isso e levaram a equipa até ao terceiro lugar. Foram eles que nos levaram, são sempre os jogadores que decidem.
Ainda assim, é invulgar...
Hás-de perguntar ao teu pai, houve um tempo em que havia um seleccionador nacional e depois um treinador. Quando foste 3.o no Mundial (66), havia um seleccionador que era o sr. Manuel da Luz Afonso e um treinador que era o sr. Otto Glória. Também não era muito comum isto existir. Depois houve o sr. José Maria Antunes, o sr. Juca, o sr. Pedroto, o sr. Mário Wilson, que eram treinadores, até que depois se passou só para a figura do seleccionador. Na altura (1984), devido às fracturas muito fortes que vinham a acentuar-se, para que se estabelecesse um equilíbrio havia os colaboradores, o sr. Morais, o sr. Toni. Tentávamos ajudar a fortalecer o grupo. Mas fomos impotentes.
Mas tudo acabou bem.
O que se conseguiu foi uma coisa histórica: pela primeira vez fomos à fase final, e não havia playoffs. Só passava o primeiro. O que era normal era ser a Rússia; ir Portugal foi anormal. Houve poucos aspectos positivos a retirar, mas 30 anos depois não vale a pena desenterrar mais coisas e bater mais no ceguinho.
Só em 2004 Portugal melhorou essa classificação (derrota na final com a Grécia). Portanto, foi uma fase final histórica.
Só havia oito equipas. Em 30 anos, muita coisa mudou no futebol, treino, não havia agentes. Em 1998, um árbitro impediu Portugal de poder estar em França. Praticamente desde 96 estivemos sempre nas fases finais, fruto dos clubes, dos treinadores portugueses e da qualidade dos jogadores.
Hoje em dia é muito diferente. Num grupo com cinco equipas, os dois primeiros ficam apurados directamente. Portugal não tem margem para falhar...
Trinta anos depois multiplicas por três: na altura eram oito, agora são 24 países na fase final. Vê o que é que não mudou. Isto é uma máquina de fazer dinheiro. Eram dois grupos de quatro selecções. Se Portugal tiver uma base de jogadores de grande qualidade em forma (Rui Patrício, Pepe, Moutinho, William, Adrien, Nani, Ronaldo), mesmo misturado com um outro que apareça, penso que não terá dificuldades de maior em chegar à fase final.
Trinta anos depois começa um novo caminho até França.
As grandes vitórias acontecem sempre com a qualificação. Dificilmente se pode almejar a mais porque olha-se para outras selecções e têm um potencial muito grande. É preciso que, naquele espaço temporal quando se joga o Mundial ou o Europeu, tenhas todos bem. Se três ou quatro não estiverem... No Brasil, não houve um jogador que estivesse bem. Portugal, com maior ou menor dificuldade, garantirá o apuramento fruto da qualidade dos seus jogadores. Na fase final depende de como estiverem, mas isso é depois.