O miúdo não se tinha ido embora assim há tanto tempo. Bem torcera o nariz à distância, ao rio que tinha de atravessar para chegar ao Seixal e lá ficar, longe de tudo o que lhe era familiar. Só ia a casa nos fins de semana em que o calendário era amigo e lhe dava tempo para regressar ao local de onde saíra, mas até houve um que serviu para fortalecer esta amizade. Há um sábado que manda o Benfica ir jogar contra o Águias da Musgueira e um pequenote das tranças soltas na cabeça fica feliz da vida. Veste-se com o fato de treino do clube, senta-se no autocarro e fica no meio de um monte de miúdos encarnados, como deve ser. Assim que chega ao estádio, porém, “enfia-se para dentro” da cabine certa para ele, mas errada para os clubes. Corre para balneário do Águias, para perto dos que via como seus, e “tem de ir um delegado do Benfica chamá-lo”. Renato Sanches “recusava-se a jogar contra o pessoal da Musgueira”.
É teimoso, insiste que ali não vai ajudar a nova equipa a ganhar à antiga. Chega até a sugerir — e a acreditar — que possa acontecer o contrário: “Oh presidente, emprestem-me um equipamento que eu jogo por vocês!”. Não desarma e estica a corda o suficiente para não jogar por ninguém e, depois, ainda testar se a corda aguenta mais um puxão. “No final também não quis ir lanchar com a equipa do Benfica. Veio lanchar connosco”, conta o homem que, no tal dia, o miúdo mais chateou. Mesmo cansado e a roçar a fartura com tantas entrevistas e jornalistas a baterem-lhe à porta, António Quadros deixa-se levar por uma das histórias que guarda de Renato. Ri-se por lembrar a vez em que o miúdo não quis jogar, depois das muitas vezes em que o procurou para lhe contar as andanças no Benfica. “Quando vinha a casa depois dos jogos vinha ter comigo, para me contar o que tinha feito no jogo. Lembro-me de uma em que me disse: ‘Presidente, hoje fiz três golos ao Belenenses, demos uma tareia!’ E lá lhe dei cinco euritos para ele ir comer uma bifana. Ficou todo contente”, revela.
Por isso ou por, com o tempo, “ir reconhecendo o carro à distância”, Renato passou a procurar sempre por quem ainda hoje é o presidente do Águias da Musgueira. Um golo, uma assistência ou um jogo a dar nas vistas. Qualquer desculpa servia e a verdade é que pelo menos uma delas acontecia quase todos os fins de semana. Era o suficiente para António Quadros tirar a carteira do bolso e recompensá-lo com dinheiro para pagar um pedaço de carne enfiado no pão. Foi assim, à beira do presidente e com uma pedincha disfarçada com alegria, que Renato Sanches terá ganhado o hábito que ainda hoje o faz ir ao Complexo Desportivo da Alta do Lumiar. Vai, chega, passa os portões, sobe as escadas no topo Sul do estádio e caminha até ao bar do Águias da Musgueira. É lá que costuma parar e parou para comer uma bifana depois de “acertar na baliza” quando quis “mandar um charuto para fora”.
Foi assim, de voz cheia com a ginga de quem brinca, que Miguel Martinho o cumprimentou no dia seguinte ao miúdo de 18 anos se estrear a titular no Estádio da Luz, para o campeonato — com um golaço. Quando chegamos ao bar com vista para o relvado, Miguel é uma de quatro pessoas sentadas à mesa que resistem ao avanço da hora de almoço. Passou o tempo dos clientes comerem, é altura de os patrões encherem a barriga e a cozinheira, de bata vestida, partilha mesa com o hoje responsável pela formação do Águias da Musgueira. É ele que estranha a cara que não conhece e pergunta quem é a visita. “Ah, mais um jornalista”, desabafa. Sabe logo ao que o Observador ali vai, como Renato Sanches sabia quando, horas depois a disparar um míssil contra a Académica, o apanharam ali a comer uma bifana. “Os jornalistas tiveram a sorte de apanhar o gajo a comer. O chavalo até ficou meio coiso: ‘Eish, nem aqui me deixam em paz. Já sabem que não posso falar’”, diz, esclarecendo que o Benfica “não o deixa falar”, ao contar a reação que viu o jovem ter ao ser descoberto no sítio onde julgava estar escondido.
Ninguém no bairro o terá denunciado ou batido com a língua nos dentes. Não, a fama foi atrás de Renato porque, em mês e meio, o médio finta as expectativas, estreia-se pelo Benfica, passa a titular e torna-se o mais novo deste século a marcar pelos encarnados em casa (o Observador vai à Musgueira após o jogo com o Atlético Madrid, na última jornada da fase de grupos da Liga dos Campeões). Daí a apanharem-no a comer uma bifana onde as come sempre foi um instante. “Quando tem folgas ou joga ao domingo em Lisboa, aparece. Sempre que pode vem cá ver o pessoal e os jogos dos juniores e dos seniores”, garante Miguel, cada vez mais alegre à medida que se vai alongando a conversa sobre Bulo, alcunha inventada pela avó materna e pela qual o tratam familiares, amigos e desconhecidos. Porque rara é a alma na Musgueira que não sabe quem ele é desde que, há 11 anos, o Benfica o levou. E por isso é que Vítor Pereira chegou a ser uma raridade.
“Foi o ano passado, não foi?” Enquanto diz isto, Miguel vira a cabeça para a esquerda e aumenta o tom de voz, como um anzol que se lança para pescar a atenção de quem está sentado na mesa ao lado. Além da chávena de café e do copo balão, meio cheio com whisky, Vítor passa a ter a distração da conversa. Antes de intervir, o senhor dos óculos assentes na ponta do nariz dá uns segundos para Miguel Martinho introduzir a história. “Bem, o Renato é conhecido aqui no clube, toda a gente sabia que ele jogava no Benfica”, começa por dizer, sobre “aquela vez” em que o Águias da Musgueira organizou um jogo — uma “Taça da Amizade” — com o Alta de Lisboa, o rival com quem “não se dá bem”, mas partilha relvado. “O Vítor estava na porta do estádio e qualquer pessoa tinha de pagar bilhete. Mas o Renato estava habituado a chegar aqui e entrar logo, sem pagar. Não dizia nada e entrava porque toda a gente o conhecia”, resume.
Toda a gente menos Vítor Pereira, à altura acabado de chegar à presidência do clube e sem tempo para saber quem era o miúdo das tranças que passara por ele mudo e calado. “Fiquei em brasa, estava um bocado para o embroado já. Virou-me as costas e entrou por ali dentro sem dizer boa tarde nem nada, como estava habituado a fazer”, recorda, para depois contar que foi “logo atrás dele”. Assim como Vítor “não o conhecia de lado nenhum”, também Renato “não fazia a mínima ideia” de quem era o homem que o obrigou, e aos amigos, a pagarem um euro pelo bilhete que nunca costumavam precisar. “Estava habituado a fazer isso. A direção tinha mudado, ele não sabia e pronto, deu naquilo. Mas ele percebeu e depois pediu desculpa. Coisas de miúdo”, resume, cara séria, deixando que Miguel se ria pelos dois. Como Renato Sanches, há outros “quatro ou cinco que jogaram à bola” no Águias e, quando aparecem por ali, fazem o mesmo — Miguel Rosa, hoje no Belenenses, ou Bruno Patacas, que passou épocas no Nacional da Madeira, são exemplos.
Elson Tavares podia ser outro. Uma “cena de miúdo”, porém, fez com que um azar se agravasse para um problema e Elsinho, diminutivo pelo qual a Musgueira o trata, não conseguiu arranjar lugar no comboio encarnado que deu boleia a Renato Sanches. Embora ainda o tenha chegado a apanhar. “Sou dois anos mais velho que ele e, antes de irmos para o Benfica, apareceu-me uma coisa no joelho. Na altura, claro, só queria jogar, jogar e jogar, não queria parar para tratar”, conta, ainda equipado e com um sorriso conformado, no final de um treino dos seniores do Águias. É lá que joga o médio rápido de pés e cheio de ideias na cabeça sobre o que fazer à bola que, em miúdo, também ficou bem visto nos olhos do Benfica. Tanto que ele e Renato a enfiaram-se no carro de António Quadros e foram “treinar a um campo ao lado do Estádio da Luz”, para ver no que dava.
Deu em coisa boa, porque “passado um quarto de hora, nem tanto, e alguns pais que estavam na bancada a ver o treino começaram a perguntar: ‘Epá, quem é aquele pretinho que ali está a jogar?’”. O então e hoje presidente do Águias ficou “caladinho que nem um rato”, mais preocupado em ouvir do que em falar. “É que o puto é mesmojeitozinho, olha para aquilo, ele toca na bola e acontece sempre alguma coisa”, escutou também. E o que de bom ouviu boca alheia dizer nesse dia era sobre Renato, e não Elsinho, mesmo que o Benfica tenha decidido ficar com ambos. “Mas só fiquei à volta de duas semanas, não mais do que isso. Eles viam que estava a coxear muito e disseram-me que, como o problema era anterior, mandaram-me embora”, lamentou, sem mágoa na confissão. O telefone da Luz ainda o chamou mais duas vezes, mas nunca conseguiu fintar o joelho e arrancar rumo à baliza para onde hoje vê Bulo a correr.
Elsinho ficou, Renato foi e daí que hoje já não se deem “tanto como antes”. Cumprimentam-se, falam e metem a conversa em dia quando se veem, que é como quem diz, quase sempre que o menino bonito da Luz aparece na Musgueira. Não precisa de estar muito com ele para saber que “ele não se tem deslumbrado” com os pulos que deu no último mês. “Tem-se mantido concentrado”, garante, antes de carregar no “naaa” com que começa por responder ao Observador, que lhe pergunta se Renato Sanches tem sentido pressão: “Vê-se logo dentro de campo que não acusa nada”. Como se viu quando deu meia volta com a bola e a bateu com força para a convencer a entrar com um golaço na baliza da Académica. Ou quando se fartou de a pedir no pé, os 18 anos a mostrarem-se enquanto os graúdos da equipa se escondiam, na última meia hora com o Atlético de Madrid. Longe de um relvado, Renato “é um bom amigo, brincalhão e nada tímido”, mesmo que Miguel Martinho diga que ele “só dá conversa às pessoas com quem tem confiança”.
Como a irmã mais velha, que muitas vezes lhe arranjou as tranças que tem penduradas na cabeça, ou os dois irmãos mais novos. E a Dona Maria, a mãe, que à medida que os anos foram passando, sempre foi confiando em António Quadros e lhe foi dizendo: “Toma conta do meu menino”. O presidente não esquece o dia em que um dirigente do Benfica lhe disse que pretendia ficar com Renato Sanches e estava desejoso para que a mãe pegasse na caneta e assinasse o consentimento. “Não, não, eu não assino nada sem a ordem aqui do Sr. Quadros”, disse, como reproduz a memória do homem que, em 1963, foi um dos fundadores do Águias da Musgueira. Nunca em tantos anos de clube teve que dar conversa a tantos jornalistas e pessoas curiosas em saber a história do miúdo que dali veio.
António encolhe os ombros enquanto diz que “já não [tem] nada para dizer”, mas, da primeira vez que falou para uma entrevista, Renato “foi logo” ter com ele. “Presidente, você é o responsável por isto tudo, portanto, agora aguente-se!”, disse, na altura, Bulo, dando um troco na mesma moeda que o presidente do Águias lhe deu quando o menino fez birra ao saber que ia jogar para o Benfica. “Ele não reagiu bem: ‘O quê? Não vou nada, não quero ir, não vou para o Seixal, é muita longe!’. Fui-lhe dizendo que era bom para ele, para o seu futuro, e para se aguentar porque tinha condições para lá ficar durante muito tempo. Mas a vida dele era aqui, com os amigos e a família”, conta quem, há uns anos, perdeu a visão mas não deixou a memória ganhar ferrugem. Por isso não se esquece das 25 bolas e da “compensação financeira” que um dirigente do Benfica, que já não o é, lhe prometeu quando Renato Sanches se mudou para o Seixal.
Lamenta o facto de a promessa não ter ficado escrita em papel, sem disfarçar algum desalento que nem a iminente reunião com Nuno Gomes, o atual diretor da formação do Benfica, consegue curar. “Aposto que não vai dar em nada, estou mesmo à espera ele diga: ‘Desculpe lá, mas nessa altura não era eu que estava à frente da formação’. O problema é que foi um acordo de boca e, na altura, eu confiei”, lamenta. António, contudo, admite que lhe “dá alegria” hoje ouvir, de três em três dias, “os comentadores na rádio e na televisão” dizerem que “o melhor jogador do Benfica em campo começou no Águias da Musgueira”. Talvez o digam por verem, como vê Miguel Martinho, o responsável pela formação do pequeno clube, um “daqueles putos a quem chamamos jogador de bairro”. Porque “se lhe dissessem, depois do jogo com a Académica, que tinha de ir jogar pela equipa B dali a meia hora, ele jogava e chegava lá com a mesma garra”. Os futebolistas que “crescem no bairro são assim”, resume. Algures por aí, Renato Sanches estará a acenar que sim com a cabeça.
Fonte: observador.pt