O meu senhor Eusébio
Aconteceu o mesmo com o escritor Nuno Bragança: chovia continuamente no seu funeral. Não houve povo na despedida do meu amigo. Nem acorreu aquela gente grada que de vez em quando salta do seu Olimpo para saudar os vivos, venerar o morto, dizer uma frase previamente estudada à família e logo regressar ao alto império de onde descera. No dia do seu enterro, senhor Eusébio da Silva Ferreira, a chuva era fria e vinha batida pelo vento e pelas vozes desfiguradas do povo. As flores iam-se enlameando à medida que tombavam na terra molhada – e agora também eu o vejo daqui, de rosto franzido à água, aos gritos, ao pranto multitudinário, à terra que pouco a pouco toma posse daquilo que em nós desde sempre lhe pertenceu.
Olho-o, senhor Eusébio, do cimo da minha janela, no Lumiar da nossa vizinhança. Ocorre-me reviver a sua presença em mim, isto é, a história da sua vida que só eu sonhei desde menino. Não há quem não tenha querido ser igual a si. Pertenço a um povo cuja infância permanece eterna à medida de cada pessoa. Tenho dez anos de idade quando pela primeira vez o vejo correr, saltar, bater bolas aéreas, rasteiras, trajetórias curvas, malabarismos de artista no circo da cidade. Minúsculo, como que motorizado, num pequeno ecrã de televisão. Fico a saber, no início dos anos 60, que o futebol existe em Portugal: passou a existir como se tivesse nascido consigo. Na minha ilha, o futebol era bem outra coisa, sem a moldura da fantasia e da loucura, nos campos da rua com pedras por baliza e no recreio da escola primária rodeado de muros e canteiros de malmequeres. Atrevo-me a imaginar que o senhor Eusébio sabe, tanto quanto eu, como doem as pedras nos nossos pés descalços, como é que as unhas saltam e o sangue espirra, como as plantas dos pés se transformam em chapas e tudo em nós é modesto, pobre e curto, exceto nos sonhos que nos acordam para o jogo e para a glória do mundo.
Agora que perdeu a memória e voltou de vez ao berço e ao colo da sua Mãe, permita-me que lhe recorde o breve pormenor da sua existência dentro de mim. Já se cantaram e choraram todos os modos das suas proezas em campo. Dispenso-me, assim, da grande e merecida laudatória dessa epopeia. Prefiro seguir a sombra da sua intimidade. Entro-lhe nos olhos mortos para ver o mundo de lá para cá, tal como julgo vê-lo a si, ainda agora, da minha janela. A chuva continua. Tristemente bela sobre as casas. Chove sobre os muros, sobre as árvores nuas, sobre a minha alma ainda presa à sua. Chove nas belas e tão amadas palavras. Chama-se remorso à impossibilidade de lhe agradecermos o futebol, as alegrias e conquistas dominicais, o ser único que você era em nós: rosto e herói das nossas vitórias.
De certo modo, o senhor inventava para nós um outro país, não este que se repete na nossa angústia, nem o tal que estava em guerra contra os mártires da sua terra. A Ditadura ficava do lado de fora dos estádios onde o senhor corria e fintava, alado nos ventos da paixão pelo jogo, levando consigo os olhos, o sorriso, o coração do povo. Sabíamos que era dupla a sua pátria, uma de ida, outra de regresso, chamada Moçambique-Portugal. Ambas se libertavam uma da outra sem que os cegos, os políticos, os colonos e os militares dessem por isso. O nosso partido político chamava-se Eusébio.
Fomos os campeões de tudo, porque o senhor nos ensinou a superar o impossível, fazendo das fraquezas força. Por isso, onde todos viam um futebolista, queria eu ver também o guerrilheiro de dois povos em guerra, um já vencido sem que o soubesse e o outro um vencedor histórico desde o glorioso primeiro dia das suas armas. Sentados no chão do mato a ouvir o relato dos jogos, e as vozes em fundo da multidão a aclamar um nome, soldados e guerrilheiros faziam uma trégua. A guerra parava. Durante duas horas, aos domingos, não havia inimigos em África. E tudo era por ordem e graça sua, senhor Eusébio da Silva Ferreira.
João de Melo
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